Ayrton Senna, Nelson Piquet, Alain Prost e Nigel Mansell. Época áurea da Fórmula 1 nas décadas de 80 e 90, foram os responsáveis por “futebolizar” a categoria no Brasil. Pergunte a qualquer pessoa, que viveu esta época, qual era a programação normal de domingo de manhã e ela responderá: “fazia um café e ia pra frente da TV assistir a corrida de Fórmula 1”.
A abundância de pilotos talentosos e agressivos na pista fez o esporte crescer de uma forma absurda, se consolidando de vez, não só no Brasil, e sim no cenário do automobilismo mundial.
Desde o seu início, em 1950, a Fórmula 1 já consagrou diversos nomes de pilotos e equipes, da qual vale mencionar, além dos 4 citados anteriormente, Juan Manuel Fangio, Jim Clark, Jackie Stewart, Niki Lauda, Michael Schumacher e Fernando Alonso como pilotos e Ferrari, Mercedes, Mclaren, Williams e Lotus como equipes.
Até o início dos anos 2000, a Fórmula 1, gerida por Bernie Ecclestone, vivia um excelente momento, com público engajado e receitas crescentes. Mas logo depois, viu todos os seus indicadores caírem de forma desastrosa. O maior esporte do automobilismo mundial passava por uma crise nunca antes vista. O público diminuía, os direitos de transmissão perdiam valor e não havia previsão de melhora. Além de consagrar equipes e pilotos, o esporte era referência e o verdadeiro “laboratório de testes” da indústria automobilística mundial. Mas isso não era suficiente.
Entendendo onde estava o erro e com uma excelente estratégia de recuperação, a Liberty Media, empresa americana, adquiriu a Fórmula 1 em 2016, iniciando o controle da operação em 2017, após a aprovação da FIA (Federação Internacional de Automobilismo). Tendo como primeiro ato, a demissão do, até então CEO, Bernie Ecclestone.
Mudança radical, porém necessária. Bernie foi muito importante para o crescimento da F1 em determinado momento, mas após os avanços tecnológicos e sociais que o mundo passava ele se tornou obsoleto, levando junto o esporte, e insistia em continuar fazendo o que sempre fez.
Foi então que Chase Carey assumiu a presidência do esporte com objetivos claros: aumentar a competitividade, diminuir privilégios e aproximar a categoria com os fãs (especialmente nas redes sociais).
Uma frase dita por ele, logo após ser nomeado, me chamou a atenção e assegurou ainda mais a minha tese de que americanos sabem fazer eventos:
“Temos 21 corridas. Devíamos ter 21 Super Bowls. Precisamos fazer eventos maiores do que nunca. Cada GP deve ter uma semana de extravagâncias, com entretenimento e música, capturando a cidade inteira.”
Diferentemente de Bernie, um assumido centralizador ou “time de um só”, Chase montou uma equipe alinhada aos seus objetivos. Dois diretores merecem destaque.
Sean Bratches, diretor comercial, ficaria responsável por fortalecer a marca por meio de um rebranding; engajar mais os fãs e captar parceiros, investindo forte em produtos digitais; captar parcerias estratégicas por meio de negociações mais transparentes; e melhorar a experiência de corrida, na pista ou pela TV, por meio de negociações de direito de transmissão e organizações complexas dos Grandes Prémios (final de semana de corrida).
Ross Brawn, diretor esportivo, com muita “bagagem” no esporte, como os 8 títulos mundiais liderando 3 equipes diferentes, foi o responsável por todas as mudanças no regulamento para aumentar a competitividade e diminuir os privilégios das equipes maiores.
A estratégia estava clara, trariam de volta a rivalidade dos anos 80 e 90, com o poder de uma mídia bem feita. Tinha tudo para dar certo, e deu! De lá pra cá, a Fórmula 1 vem numa crescente que surpreendeu todo o mundo e virou um case de sucesso no mundo do Business e Marketing.
Começando pelas redes sociais, a Fórmula 1 entrou no Youtube, Instagram, Twitter e TikTok. Liberou e motivou as equipes e pilotos a entrarem nas mesmas plataformas - antes proibido pelo ditador Bernie - o que aumentou muito o contato dos fãs com os pilotos. E aqui lembro que, pessoas se conectam com pessoas. Bingo! Mais um ponto pra F1!
Apesar da presença digital estar fazendo diferença, não foi isso que mudou o cenário. O verdadeiro divisor de águas foi a parceria feita com a Netflix, que resultou na série Drive to Survive. Vamos nos aprofundar nessa estratégia. O público da F1, herdado da era de Bernie Ecclestone, era velho, então era necessário se aproximar do público mais jovem para pensar no longo prazo. Com a entrada nas redes sociais e a criação da série, o esporte foi onde o público alvo estava.
Além disso, a população dos EUA é uma parcela importantíssima - não preciso citar o porquê - para qualquer negócio mundial, mas culturalmente, no esporte, o americano é nacionalista ao extremo. O maior esporte do mundo é o futebol, mas na América o Futebol Americano (NFL) e o Basquete (NBA) são os principais e deixam o Futebol Mundial como coadjuvante. Assim também acontecia no automobilismo, com a Nascar e a Fórmula Indy, dois esportes a motor muito populares que deixavam a Fórmula 1 como uma mera coadjuvante. Triste mas era a verdade.
Com intenção de capturar audiência e aumentar a quantidade de fãs, a F1 falou a língua dos norte-americanos e dos jovens: lançou a série que mostra os bastidores do esporte com um storytelling dramático sobre os desafios dos pilotos. A série humaniza o esporte e se conecta com o fã, muito além da pista e dos carros, mas sim por meio da emoção. Além disso, desperta o interesse das pessoas, mostrando todo o glamour envolvido na Fórmula 1, com destaque para o GP de Mônaco, fazendo com que queiramos fazer parte deste universo. E por último a série não destaca o que você vê na TV, ela conta detalhes pouco óbvios e bastante curiosos que fazem você querer consumir tudo que envolve Fórmula 1. Genial!
Aliado a tudo isso, as mudanças de regulamentos fizeram as equipes ficarem mais próximas umas das outras nas corridas e hegemonias como a da Mclaren na década de 80 com Senna e Prost, Williams na década de 90 com Prost e Mansel, Ferrari nos anos 2000 com Schumacher e Barrichello e da Mercedes com Lewis Hamilton e Nico Rosberg tendem a não existirem mais, deixando o campeonato muito mais atrativo.
E se você está entre os fãs da Fórmula 1, entende exatamente o que estou falando.
GP de Abu Dhabi de 2021, última prova da temporada, última volta da corrida. Se você não viu, você perdeu uma das melhores voltas de toda a história da Fórmula 1, e uma das provas de que as mudanças no regulamento surtiram efeito.
O esporte estava caminhando nos rumos corretos, mas ainda tinha coisa a melhorar. Foi então que a F1 fez uma parceria com a AWS (Amazon Web Services), outra grande estratégia para retenção de fãs. Eu explico o porquê.
Na Fórmula 1, não é só o carro que precisa ser rápido, as decisões estratégicas durante as corridas também. Decisões demoradas ou tomadas de forma errada, podem custar uma corrida ou até um campeonato inteiro. Então as equipes são altamente munidas de dados colhidos de todas as partes do carro e da pista. A abundância destes dados despertou a curiosidade dos fãs, que gostariam de “dar pitacos” mais certeiros. Foi aí que a Fórmula 1 lançou a sua própria plataforma de streaming, a F1TV, que, além de transmitir as corridas ao vivo e ter todas as corridas da história da F1, contém todos os dados públicos dos carros na pista, fazendo com que o espectador se sinta um estrategista na sua multitela, analisando dados, criando sua própria estratégia de corrida e avaliando as decisões tomadas pelas equipes. Toda essa captação e disponibilização dos dados em tempo real, é um trabalho realizado pela AWS, que inclui mais dados a cada ano.
“Fomos capazes de trazer os fãs para mais perto das decisões de fração de segundo na pista, reformular nossos futuros carros de F1, nos ajudar a entender melhor a riqueza dos dados da F1 e executar análises e machine learning para explorar o potencial desses dados e muito mais.” Disse Ross Brawn orgulhoso.
Já que estamos falando de dados, vou mostrar os resultados de todas essas ações já realizadas pela direção da competição.
Segundo a pesquisa realizada pela Nielsen em 2021, mais de 360 mil pessoas começaram a assistir a Fórmula 1 em 2022 após assistirem Drive to Survive, ou seja, 41% dos espectadores da série, com perfil mais jovem. Do ano de 2020 para 2021, houve um aumento de 54% de espectadores nos Estados Unidos, quebrando o recorde de audiência.
Além disso, houve um aumento de 36% de seguidores nas redes sociais e 73 milhões de “novos interessados pela F1” em 10 regiões chave, incluindo o Brasil. 77% de todos os “novos interessados pela F1” são de idade entre 16 e 35 anos, que já representa 46% de todos os fãs. 40% a mais que no ano anterior.
Com todo esse crescimento, a companhia acredita que chegará à marca de 1 bilhão de fãs em 2022, com a média de crescimento de 1,1% ao mês. Surpreendente!!
Além de todos estes números que mostram o sucesso cada vez maior, marcas como Audi e Porsche, ambas do grupo Volkswagen, já sinalizaram interesse em entrar na categoria, assim como a Andretti, equipe americana já consagrada na Fórmula Indy e presente na Fórmula E.
“A realidade é que todo mundo quer entrar agora, o que Eclestone fez foi muito importante, mas agora é diferente, a tecnologia mudou.” disse Toto Wolff, chefe da equipe Mercedes AMG Petronas.
A insistência da Andretti de entrar na F1 representa o crescimento do esporte no país, que contava com somente um Grande Prêmio desde 2012, em Austin, que bateu recorde de público no ano passado, com 400.000 espectadores. Em 2022 já foi realizado um segundo, em Miami, que tiveram seus ingressos, com valor mínimo de US$ 640,00, esgotados em menos de 1 hora. E a partir de 2023, contará com a corrida noturna de Las Vegas. Será um espetáculo!
Acordos com emissoras não são fechados com prazos grandes. A direção percebe a valorização do seu produto e faz contratos de direitos de transmissão curtos. Um dos acordos, feitos em 2019 por US$ 15 milhões com duração de 3 anos, tem como especulação, ser negociado por US$ 75 milhões, 5 vezes mais. E não se engane pensando que eles preferem quem pague mais. No Brasil, fontes confirmaram que o board da Fórmula 1 recusou contrato com a Globo, porque a emissora não passaria todas as corridas da temporada. A Band aproveitou e garantiu a categoria na sua programação. Cartada certeira!
Para 2022, a Netflix já anunciou um investimento de US$ 17 bilhões em conteúdos originais e a HBO Max promete mais, US$ 20 bilhões. Isso mesmo, bilhões.
O circo da Fórmula 1 promove também os lugares onde passa. O GP do Canadá, realizado em Quebec, é o principal evento do ano segundo o ministério do turismo, com 70% do público de outras localidades e do exterior. E o governo do Azerbaijão anunciou que desde 2016, ano do primeiro GP no país, o turismo vem aumentando. 50% a mais de pessoas visitaram o país no ano de 2018, em comparação com 2016. E o número de leitos disponíveis passou de 0,8 milhão para 3,8 milhões a partir de 2021. Ainda segundo o governo do país, o turismo passou a ser uma das fontes de renda do Azerbaijão ao lado da produção de petróleo.
A Fórmula 1 se transformou, por meio de dados e ações de marketing, principalmente de conteúdo. Ignorar as evoluções da tecnologia e da sociedade, definitivamente não é o melhor caminho. Bernie Ecclestone ainda figura entre os grandes da Fórmula 1, mas ainda critica sem filtro a gestão da Liberty Media. Quem sabe um dia ele descobre a frase clichê, mas provada por tudo mencionado neste texto, que não é o que te trouxe até aqui que vai te levar adiante.